dezembro 06, 2002

A coluna que nunca vou escrever ;-)

Impossibilidades

Saio do Carlota, dobro a esquina na Praça Cazuza e entro na Letras & Expressões para ver as novidades. Encontro Lobão, entusiasmado com publicações sobre teclados e tecnologia musical, com os quais está se familiarizando para futuros CDs. Conversamos sobre seus recentes shows no Nordeste, discutimos os méritos do Audioslave (muitos, acho eu) e do System of a Down (muitos, acha ele). Lobão se despede e fico ali, vazio, diante das prateleiras, cheias, cheias de revistas, a maioria importada. Nessas horas sempre bate uma ponta de depressão porque tenho uma teoria sobre superbancas, as instaladas dentro de livrarias e as de rua mesmo: elas nos esfregam na cara nossas impossibilidades.

Há capas com mulheres e ondas curvilíneas que você nunca irá pegar, capas com mulheres e pratos deliciosos que você nunca irá comer, capas com mulheres e resorts paradisíacos que você nunca irá visitar, capas com mulheres e festas hype que nunca irá freqüentar, com mulheres e carros sofisticados que nunca irá dirigir, mulheres e casas nababescas que nunca irá dormir, mulheres e guitarras iradas que nunca irá tocar, mulheres e artigos inteligentes que nunca irá penetrar, capas com mulheres e craques da pelota que nunca irão jogar no seu time. Você fica ali, fazendo “uhu” em silêncio e passando as mãos bobas pelas páginas, como se estivesse absorto, captando a sabedoria das palavras, quando na verdade está apenas vendo as fotos e maldizendo a sua existência miserável.

É sempre sutilmente humilhante e, no entanto, todos os dias, milhares de cariocas folheiam revistas como se a sofisticação pudesse subir pelos seus dedos, como o veneno nas páginas do livro banido de Aristóteles em “O nome da rosa”. Por falar em livro, fui a uma noite de autógrafos em que serviam Jack Daniel’s com gelo. Olha, eu posso ser rebaixado para a Segundona, posso fazer essa terapia pública aqui, sexta-feira após sexta-feira, mas há alguns limites de decência: macho não bebe Jack Daniel’s com gelo nem se estiver disputando uma pelada às quatro da tarde num gramado do Maracanã. Um blended e, vá lá, às vezes até um puro malte escocês aceitam gelo. (Gelo inibe odores, cheiros e buquês. Ou você acha que aquelas pedrinhas estão no mictório pro xixi se refrescar?). Um Jack Daniel’s, jamais. Joguei as pedrinhas noutro copo da bandeja. Duplo, por favor.

Digressiono, digressiono.

Em tese, a gente passa na banca por causa das possibilidades. De imediato, óbvio, da possibilidade de uma boa leitura. Num segundo pensamento, lúbrico, da possibilidade de uma paquera-cabeça (Lugares como a Letras & Expressões — ou a Livraria da Travessa, que não vende revistas — se tornaram pontos de encontro, equivalentes cerebrais das academias de ginástica e a frase “você pode me passar a ‘Q’ ali de cima, por favor?” já deve ter dado em casamento). Num terceiro momento, por causa da possibilidade de vir a experimentar alguma daquelas coisas: a pousada em Papeete, a villa na Toscana, a onda em Mavericks, o novo CD do Paul Weller, a loura peituda na lingerie transparente. Durante alguns minutos, a gente acha que isso tudo está literalmente ao alcance das mãos.

Nesse ponto, porém, a visita na prática se torna um desastre, um exercício de impossibilidades, um aprendizado ritual sobre a própria frustração, sobre o querer e o poder. A gente se reenergiza de bom gosto e de cosmopolitismo, concordo. Só que também deixa um bocado de libido pingando das prateleiras, quase sem perceber. “Quase” porque chega um ponto em que, entre levar a revista com a Ferrari ou a Juliana Paes que nunca irá pilotar, você acaba não levando nenhuma, com desculpas fajutas do tipo “eu não ia ter tempo para ler mesmo...” ou “estou sem dinheiro trocado...” Então, antes que quebre a banca de desespero e revolta, com a barganha simbólica que estava prestes a fazer no doloroso limiar da consciência, o sujeito volta para as trevas de onde veio.

Bom, o fato é que nessa noite do Carlota e do Lobão eu saí da Letras & Expressões sem levar nada. Claro, claro. Porque só tinha sobrado a “Q” de outubro.


Artur Dapieve, genial, em O GLOBO de 6/12/2002

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